O segmento de comercialização de energia elétrica reúne características que o tornam particularmente afeito ao uso da arbitragem para a solução de conflitos. As transações envolvem contratos de elevado valor e se referem a um insumo essencial para economia. Quando surgem controvérsias, a tecnicidade das discussões favorece a opção pela cláusula arbitral, conferindo-se o poder decisório a um especialista no assunto. A celeridade do procedimento tem particular importância para a dinâmica das transações.
Por motivos desta ordem, a estruturação normativa do mercado de energia elétrica no Brasil contemplou a arbitragem como meio de solução de conflitos no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, mediante previsão no art. 4º, § 5º, da Lei nº 10.848/2004, criadora da CCEE.
Os conflitos em questão seriam aqueles relacionados com as operações realizadas entre os agentes e a CCEE, assim como entre os próprios agentes, nas hipóteses em que tivessem repercussões sobre as operações na CCEE – sempre versando, vale dizer, sobre direitos patrimoniais disponíveis e nas situações em que o conflito não estivesse subordinado à competência direta da ANEEL.
Pela natureza associativa da CCEE, que congrega as diversas categorias de agentes aptas à comercialização de energia elétrica, dentre os quais geradores, distribuidores, comercializadores e consumidores, entendeu-se por fixar a cláusula compromissória e o compromisso arbitral na forma de uma Convenção Arbitral, de adesão obrigatória a todos os agentes que participam da CCEE.
A Convenção Arbitral foi aprovada pelos agentes da CCEE em assembleia geral no início de 2005, sendo posteriormente homologada pela ANEEL via Resolução Homologatória nº 531, de 7 de agosto de 2007. Uma das características da convenção foi a de que os conflitos seriam submetidos exclusivamente à Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, entidade externa eleita pelos agentes da CCEE destinada a estruturar e administrar o processo de solução de conflitos através da arbitragem.
Passados 14 anos do início da vigência da Convenção Arbitral, os agentes da CCEE, no âmbito do seu direito e competência previstos no Estatuto Social, aprovaram por unanimidade a totalidade da proposta de alteração da Convenção Arbitral na 68ª Assembleia Geral Extraordinária (AGE), realizada em 19/10/2021, e submeteram o texto para homologação da ANEEL, que instruiu o processo e homologou a revisão mediante Resolução Homologatória nº 3.173, de 14 de fevereiro de 2023.
As alterações promovidas na Convenção Arbitral foram pautadas pelos seguintes eixos: falta de competitividade de Câmaras; afetação do mercado decorrente de discussões bilaterais; tratamento de custos com regras claras quanto à abrangência da Convenção Arbitral; e a necessidade de adequação da Convenção à evolução do mercado.
(i) Pluralidade de Câmaras: para acabar com a exclusividade da Câmara Arbitral da FGV, foi inserida cláusula que permite a qualquer Câmara homologada pela CCEE aderir à Convenção Arbitral. Atualmente, a CCEE possui oitos câmaras habilitadas: Fundação Getúlio Vargas – FGV, Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – Brasil, Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA, Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP-FIESP, Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá – CAM-CCBC, Conselho Arbitral do Estado de São Paulo – CAESP, Secretaria Internacional da Corte de Arbitragem (SCIAB) – ICC Brasil e ARBITAC – Câmara de Mediação e Arbitragem.
(ii) Referência à Convenção de Comercialização para definição de conflitos arbitráveis: a relação dos conflitos arbitráveis não consta expressamente da Convenção Arbitral, sendo referida como a relação prevista na Convenção de Comercialização, instituída pela Resolução Normativa nº 957, de 7 de dezembro de 2021. Trata-se de medida de economia processual, de modo que eventual alteração da Convenção de Comercialização não ensejará a revisão da Convenção Arbitral.
Convenção de Comercialização:
“Art. 44. Os Agentes da CCEE e a CCEE deverão dirimir, por intermédio da Câmara de Arbitragem, todos os conflitos que envolvam direitos disponíveis, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, nas seguintes hipóteses:
I – conflito entre dois ou mais Agentes da CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da ANEEL ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela;
II – conflito entre um ou mais Agentes da CCEE e a CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da ANEEL ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela; e
III – sem prejuízo do que dispõe cláusula específica nos CCEARs, conflito entre Agentes da CCEE decorrente de Contratos Bilaterais, desde que o fato gerador da divergência decorra dos respectivos contratos ou de Regras e Procedimentos de Comercialização e repercuta sobre as obrigações dos agentes contratantes no âmbito da CCEE.”
(iii) Aprimoramento do texto vigente que dispõe sobre exceção à via arbitral para conflitos bilaterais que não repercutam nas operações da CCEE: diante da dúvida causada pela Convenção Arbitral de 2007 quanto a esta exceção, o texto foi aprimorado para esclarecer que a via arbitral não é obrigatória aos conflitos bilaterais que não afetem direitos de terceiros e, por consequência, não repercutem nas operações da CCEE. Portanto, permanece o entendimento de que uma parte dos conflitos contratuais permanece passível de solução pelo judiciário.
(iv) Consolidação da prática pela CCEE de cobrança judicial de valores inadimplidos: tratando-se de uma prática em que a CCEE procede no judiciário à cobrança em nome de outros agentes, inseriu-se esta hipótese no texto da Convenção Arbitral para evitar discussões sobre qual seria a via adequada para a CCEE cobrar valores inadimplidos.
(v) Mecanismo de Proteção ao Mercado: inseriu-se dispositivo que permite exigir a apresentação de garantias pelo Tribunal Arbitral para que os efeitos financeiros das decisões oriundas de conflitos bilaterais fiquem restritos às partes do procedimento arbitral. A alteração permitiu que a CCEE requeira a prestação de garantas idôneas nos casos em que a operacionalização da decisão venha a impactar outros agentes que não estejam envolvidos no conflito.
(vi) Suspeição de árbitros e redução do prazo de quarentena para ex-contratado, ex-prestador de serviço ou ex-consultor: trata-se de alteração promovida para ampliar o rol de árbitros, alterando-se a Convenção para que o rol seja interpretado como hipótese de suspeição, e não de impedimento. Assim, a despeito da constatação de tais hipóteses, as partes podem decidir pela escolha do árbitro, mediante avaliação subjetiva.
(vii) Divulgação de jurisprudência (ementas): trata-se de uma importante medida para difusão da arbitragem, prevendo-se a formação de repositório público de ementas para facilitar os estudos e conhecimentos das teses adotadas pelos Tribunais Arbitrais. Para tanto, foi inserido um dispositivo que obriga as Câmaras Arbitrais a criarem esse repositório público de ementas, respeitando-se as questões de confidencialidade.
(viii) Regra de transição: a nova Convenção Arbitral passou a ser aplicável aos conflitos que venham a ser instaurados após a sua homologação.
Com estas modificações, a Convenção Arbitral se adaptou a uma realidade do mercado de energia elétrica que difere em muito daquele existente em 2007, quando a CCEE reunia algumas centenas de agentes, em contraste com a existência de mais de 14 mil agentes atualmente vinculados à Câmara.
A modernização do mercado de energia e a ampliação do mercado livre requerem uma Convenção Arbitral aberta à competição de diversas Câmaras e maior transparência no acesso às ementas das decisões, objetivos estes que foram alcançados com a sua recente revisão, favorecendo a solução adequada dos conflitos com respeito a uma premissa valiosa: a liberdade de escolha da Câmara Arbitral.
As discussões suscitadas pela revisão da Convenção Arbitral também favorecem a difusão e a popularização da arbitragem para a solução de conflitos bilaterais oriundos da comercialização de energia, os quais, apesar de ainda poderem ser levados ao judiciário, seguramente encontrarão um número crescente de interessados em sua adoção.
A Convenção Arbitral pode ser consultada neste link.